Fui lê-lo no que talvez fosse o desejo desse escritor que me encabula:
em sua oralidade. Encarei mais de cinco páginas — versão xerox — em voz alta. Em
muitos momentos me senti uma criança aprendendo a ler.
Rosa em minha imaginação quis desarranjar meus pensamentos. E eu
comecei a compreendê-lo em voz alta.
Estou orgulhosa de minzinha.
De manhã, todos
os gatos nítidos nas pelagens, e eu em serviço formal, mas, contra o devido, cá
fora do portão, à espera do menino com os jornais, e eis que, saindo, passa,
por mim e duas ou outras três pessoas que perto e ali mais ou menos ocasionais
se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se dizer que provisoriamente impoluto.
E, pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram a dar-se, para nós,
urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia: de chinfrim, afã
e lufa-lufa.
— "Ô, seô!…" — foi o grito;
senão se, de guerra: — "Ugh, sioux!…"
— também cabendo ser, por meu testemunho, já que com concentrada ou distraída
mente me encontrava, a repassar os próprios, íntimos quiproquós, que a matéria
da vida são. Mas: — "Oooh…"
— e o senhor tão bem passante algum quieto transeunte apunhalara?! Isso em
relance e instante visvi — vislumbrou-se-me. Não. Que só o que tinha sido —
vice-vi mais —: pouco certeiro e indiscreto no golpe, um afanador de carteiras.
Desde o qual, porém, irremediável, ia-se o vagar interior da gente, roto, de
imediato, para durante contínuos episódios.
— "Sujeito de trato, tão trajado…"
— estranhava, surgindo do carro, dentr'onde até então cochilara, o chofer do
dr. Bilôlo. — "A caneta-tinteiro foi
que ele abafou, do outro, da lapela…" — depunha o menino dos jornais,
só no vivo da ocasião aparecendo. Perseguido, entretanto, o homem corria que
luzia, no diante do pé, varava pela praça, dava que dava. — "Pega!" Ora, quase no meio da
praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora,
ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se
livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito
arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. — Uma
palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? — inquiriria um
filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.
— Esta! — me mexi, repiscados os olhos, em
tento por me readquirir. Pois o nosso homem se fora, a prumo, a pino, com donaires
de pica-pau e nenhum deslize, e ao topo se encarapitava, safado, sabiá, no
páramo empíreo. Paravam os de seus perséquito, não menos que eu surpresos, detidos,
aqui em nível térreo, ante a infinita palmeira — muralhavaz. O céu só safira:
No chão, já nem se contando o crescer do ajuntamento, dado que, de toda a circunferência,
acudiam pessoas e povo, que na praça se emagotava. Tanto nunca pensei que uma
multidão se gerasse, de graça, assim e instantânea.
Nosso homem,
diga-se que ostentoso, em sua altura inopinada, floria e frutificava: nosso não
era o nosso homem. — "Tem arte…"
— e quem o julgava já não sendo o jornaleiro, mas o capelão da Casa, quase que com
regozijo. Os outros, acolá, de infra a supra, empinavam insultos, clamando do
demo e aqui-da-polícia, até se perguntava por arma de fogo. Além, porém, muito
a seu grado, ele imitativamente aleluiasse, garrida a voz, tonifluente; porque
mirável era que tanto se fizesse ouvir, tudo apesar-de. Discursava sobre
canetas-tinteiro? Um carnelô, portanto, atrevido na propaganda das ditas e
estilógrafos. Em local de má escolha, contudo, pensei; se é que, por
descaridosa, não me escandalizasse ainda a ideia de vir alguém produzir
acrobacias e dislativas peloticas, dessas, justo em frente de nosso Instituto. Extremamente
de arrojo era o sucesso, em todo o caso, e eu humano; andei ver o reclamista.
Chamavam-me,
porém, nesse entremenos, e apenas o Adalgiso, sisudo ele, o de sempre, só que
me pegando pelo braço. Puxado e puxando, corre que apressei-me, mesmo assim,
pela praça, para o foco do sumo, central transtornamento. Com estarmos ambos de
avental, davam-nos alguma irregular passagem. — "Como foi que fugiu?" — todo o mundo perguntando, do
populacho, que nunca é muito tolo por muito tempo. Tive então enfim de entender,
ai-me, mísero. — "Como o
recapturar?" Pois éramos, o Adalgiso e eu, os internos de plantão, no dia
infausto' fantástico.
Vindo o que o
Adalgiso, com de-curtas, não urgira em cochichar-me: nosso homem não era nosso
hóspede. Instantes antes, espontâneo, só, dera ali o ar de sua desgraça. — "Aspecto e facies nada anormais, mesmo a forma e conteúdo da
elocução a princípio denotando fundo mental razoável…" Grave, grave, o
caso. Premia-nos a multidão, e estava-se na área de baixa pressão do ciclone. —
"Disse que era são, mas que, vendo a
humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a
decisão de se internar, voluntário: assim, quando a coisa se varresse de
infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que,
à maioria,cá fora, viriam a fazer falta…" — e o Adalgiso, a seguir, nem
se culpava de venial descuido, quando no ir querer preencher-lhe a ficha.
— "Você se espanta?" — esquivei-me.
De fato, o homem exagerara somente uma teoria antiga: a do professor Dartanhã,
que, mesmo a nós, seus alunos, declarava-nos em quarenta-por-cento casos
típicos, larvados; e, ainda, dos restantes, outra boa parte, apenas de mais
puxado diagnóstico… Mas o Adalgiso, mas ao meu estarrecido ouvido: — "Sabe quem é? Deu nome e cargo.
Sandoval o reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas…" — assim baixinho,
e choco, o Adalgiso.
Ao que, quase de
propósito, a turba calou-se e enervou-nos, à estupefatura. Desolávamo-nos de
mais acima olhar, aonde evidentemente o céu era um desprezo de alto, o azul
antepassado. De qualquer modo, porém, o homem, aquém, em torre de marfim, entre
as verdes, hirtas palmas, e ao cabo de sua diligência de veloz como um foguete,
realizava-se, comensurado com o absurdo. Sei-me atreito a vertigens. E quem não,
então, sob e perante aquilo, para nós um deu-nos-sacuda, de arrepiar perucas,
semelhante e rigorosa coisa? Mas um super-humano ato pessoal, transe
hiperbólico, incidente hercúleo. — "Sandoval
vai chamar o dr. Diretor, a Polícia, o Palácio de Governo…" —
assegurou o Adalgiso.
Uma palmeira não
é uma mangueira, em sua frondosura, sequer uma aroeira, quanto a condições de
fixibilidade e conforto, acontece-que. Que modo e como, então, aguentava de
reter-se tanto ali, estadista ou não, são ou doente? Ele lá não estava
desequilibrado; ao contrário. O repimpado, no apogeu, e rematado velhaco, além
de dar em doido, sem fazer por quando. A única coisa que fazia era sombra.
Pois, no justo momento, gritou, introduziu-se a delirar, ele mais em si,
satisfatível: — "Eu nunca me entendi
por gente!…" — de nós desdenhava. Pausou e repetiu. Daí e mais: — "Vocês me sabem é de mentira!"
Respondendo-me? Riu, ri, riu-se, rimo-nos. O povo ria.
Adalgiso, não: — "Ia adivinhar? Não entendo de
política" — inconcluía. — "Excitação
maníaca, estado demencial… Mania aguda, delirante… E o contraste não é tudo,
para se acertarem os sintomas?" — ele, contra si consigo, opunha.
Psiu, porém, quem, assado e assim, a mundos e resmungos, sua total presença
anunciava? Vê-se que o dr. Diretor: que, chegando, sobrechegado. Para arredar
caminho, por império, os da Polícia — tiras, beleguins, guardas, delegado,
comissário — para prevenir desordem. Também, cândidos, com o dr. Diretor, os
enfermeiros, padioleiros, Sandoval, o Capelão, o dr. Eneias e o dr. Bilôlo.
Traziam a camisa-de-força. Fitava-se o nosso homem empalmeirado. E o dr. Diretor,
dono: — "Há de ser nada!"
Contestando-o,
diametral, o professor Dartanhã, de contrária banda aportado: — "Psicose paranóide hebefrênica,
dementia praecox, se vejo claro!"
—; e não só especulativo- teorético, mas por picuinha, tanto o outro e ele se
ojerizavam; além de que rivais, coincidentemente, se bem que calvo e não calvo.
Toante que o dr. Diretor ripostou, incientífico, em atitude de autoridade: — "Sabe quem aquele cavalheiro é?"
— e o título declinou, voz vedada; ouvindo-o, do povo, mesmo assim, alguns, os
adjacentes sagazes. Emendou o mote o professor Dartanhã: — "…mas transitória perturbação, a qual, a capacidade civil, em nada
lhe deixará afetada…" — versando o de intoxicação-ou- infecção, a
ponto falara. Mesmo um sábio se engana quanto ao em que crê —; cremos, nós
outros, que nossos límpidos óculos limpávamos. Assim cada qual um asno
prepalatino, ou, melhor, apud o
vulgo: pessoa bestificada. E, pois que há razões e rasões, os padioleiros não
depunham no chão a padiola.
Porque, o nosso,
o excelso homem, regritou: — "Viver
é impossível!…" — um slogan;
e, sempre que ele se prometia para falar, conseguia-se, cá, o multitudinal silêncio
— das pessoas de milhares. Nem esquecera-lhe o elemento mímico: fez gesto — de
que empunhasse um guarda-chuva. Ameaçava o quê a quem, com seu estro catastrófico?
— "Viver é impossível!" — o
dito declarado assim, tão empírico e anermenêutico, só através do egoísmo da
lógica. Mas, menos como um galhofeiro estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo
a ouvir, antes em leal tom e generoso. E era um revelar em favor de todos,
instruía-nos de verdadeira verdade. A nós — substantes seres sub-aéreos — de
cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a vida se dizia, em si,
impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente, universalmente, era preciso,
sem cessar, um milagre; que é o que sempre há, a fundo, de fato. De mim, não pude
negar-lhe, incerta, a simpatia intelectual, a ele, abstrato — vitorioso ao
anular-se — chegado ao píncaro de um axioma.
Sete peritos,
oficiais pares de olhos, do espaço inferior o estudavam. — "Que ver: que fazer?" — agora. Pois o dr. Diretor
comandava-nos em conselho, aqui, onde, prestimosa para nós, dilatava a Polícia,
a proêmíos de casse-têtes e blasfemos
rogos, uma clareira precária. Para embaraços nossos, entretanto, portava-se
árduo o ilustre homem, que ora encarnava a alma de tudo: inacessível. E —
portanto — imedicável. Havia e haja que reduzi-lo a baixar, valha que por
condigno meio desguindá-lo. Apenas, não estando à mão de colher, nem sendo de
se atrair com afagos e morangos. — "Fazer
o quê?" — unânimes, ora tardávamos em atinar. Com o que o dr. Diretor,
como quem saca e desfecha, prometeu: — "Vêm
aí os bombeiros!" Ponto. Depunham os padioleiros no chão a padiola.
O que vinha, era
a vaia. Que não em nós, bem felizmente, mas no nosso guardião do erário. Ele
estava na ponta. Conforme quanto, rápida, no chacoalhar da massa, difundira-se a
identificação do herói. Donde, de início, de bufos avulsos gritos, daqui, aqui,
um que outro, comicamente, a atoarda pronta borbotava. E bradou aos céus,
formidável, una, a versão voxpopular: — "Demagogo!
Demagogo!…" — avessa ressonância. — "Demagôoogo!…" — a belo e bom, safa, santos meus, que
corrimaça. O ultravociferado halali, a extrair-se de imensidão: apinhada, em
pé, impiedosa — aferventada ao calor do dia de março. Tenho que mesmo uns de
nós, e eu, no conjunto conclamávamos. Sandoval, certo, sim; ele, na vida, pela
primeira vez, ainda que em esboço, a revoltar-se. Reprovando-nos o professor
Dartanhã: — "Não tem um político
direito às suas moléstias mentais?" — magistralmente enfadado. Tão
certo que até o dr. Diretor em seus créditos e respeitos vacilasse — psiquiatrista.
Vendo-se, via-se que o nosso pobre homem perdia a partida, agora, desde que não
conseguindo juntar o prestígio ao fastígio. Demagogo…
Conseguiu-o — de
truz, tredo. Em suave e súbito, deu-se que deu que se mexera, a marombar, e por
causas. Daí, deixando cair… um sapato! Perfeito, um pé de sapato — não mais — e
tão condescendentemente. Mas o que era o teatral golpe, menos amedrontador que
de efeito burlesco vasto. Claro que no vivo popular houve refluxos e fluxos,
quando a mera peça demitiu-se de lá, vindo ao chão, e gravitacional se exibiu
no ar. Aquele homem: — "É um
gênio!" — positivou o dr. Bilôlo. Porque o povo o sentia e aplaudia,
danado de redobrado: — "Viva! Viva!…"
— vibraram, reviraram. — "Um
gênio!" — notando-se, elegiam-no, ofertavam-lhe oceânicas palmas. Por São
Simeão! E sem dúvida o era, personagente, em sua sicofância, conforme confere e
confirmava: com extraordinária acuidade de percepção e alto senso de
oportunidade. Porque houve também o outro pé, que não menos se desabou, após
pausa. Só que, para variar, este, reto, presto, se riscou — não parabolava.
Eram uns sapatos amarelados. O nosso homem, em festival — autor, alcandorado,
alvo: desta e elétrica aclamação, adequada.
Estragou-a a
sirene dos bombeiros: que eis que vencendo a custo o acesso e despontando, com
esses tintinábulos sons e estardalho. E ancoravam, isto é — rubro de lagosta ou
arrebol — cujo carro. Para eles se ampliava lugar, estricto espaço de manobra;
com sua forte nota belígera, colheram sobeja sobra dos aplausos. Aí já seu Comandante
se entendendo com a Polícia e pois conosco, ora. Tinham seu segundo, comprido
caminhão, que se fazia base da escada: andante apetrecho, para o
empreendimento, desdobrável altaneiramente, essencial, muito máquina. Ia-se já
agir. Manejando-se marciais tempos e movimentos, à corneta e apito dados.
Começou-se. Ante tanto, que diria o nosso paciente — exposto cínico insígne?
Disse. — "O feio está ficando coisa…" —
entendendo de nossos planos, vivaldamente constatava; e nisso indocilizava-se,
com mímica defensiva, arguto além de alienado. A solução parecendo
inconvir-lhe. — "Nada de cavalo-de-pau!"
— vendo-se que de fresco humor e troiano, suspeitoso de Palas Ateneia. E: — "Querem comer-me ainda verde?!"
— o que, por mero mimético e sintomático, apenas, não destoava nem jubilava. À
arte que, mesmo escada à parte, os bons bombeiros, muito homens seriam para de
assalto tomar a palmeira-real e superá-la: o uso avulso de um deles, tão bem em
técnicas, sabe-se lá, quanto um antllhano ou canaca. A poder de cordas,
ganchos, espeques, pedais postiços e poiais fincáveis. Houve nem mais, das
grandes expectações, a conversa entrecortada. O silêncio timbrava-se.
Isto é, o homem,
o prócer, protestou. — "Pára!…"
Gesticulou que ia protestar mais. — "Só
morto me arriam, me apeiam!" — e não à-toa, augural, tinha ele o verbo
bem adestrado. Hesitou-se, de cá para cá, hesitávamos. — "Se vierem, me vou, eu… Eu me vomito daqui!…" —
pronunciou. Declamara em demorado, quase quite eufórico, enquanto que nas
viçosas palmas se retouçando, desvárias vezes a menear-se, oscilante por um
fio. À coaxa acrescentou: — "Cão que
ladra, não é mudo…" — e já que só faltava mesmo o triz, para passar-se
do aviso à lástima. Parecia prender-se apenas pelos joelhos, a qualquer simples
e insuportável finura: sua palma, sua alma. Ah… e quase, quasinho… quasezinho, quase…
Era de horrir-me o pêlo. Nanja. — "É
de circo…" — alguém sus sussurrou-me, o dr. Eneias ou Sandoval. O
homem tudo podia, a gente sem certeza disso. Seja se com simulagens e
fictâncias? Seja se capaz de elidir-se, largar-se e se levar do diabo. No
finório, descabelado propósito, perpendurou-se um pouco mais, resoluto
rematado. A morte tocando, paralela conosco — seu tênue tambor taquigráfico. Deu-nos
a tensão pânica: gelou-se-me. Já aí, ferozes, em favor do homem: — "Não! Não!" — a gritamulta — "Não! Não! Não!" —
tumultroada. A praça reclamava, clamava. Tinha-se de protelar. Ou produzir um
suicídio reflexivo — e o desmoronamento do problema? O dr. Diretor citava Empedocles.
Foi o em que os chefes terrestres concordaram: apertava a urgência de não se
fazer nada. Das operações de salvamento, interrompeu-se o primeiro ensaio. O homem parara de balançar-se — irrealmente na
ponta da situação. Ele dependia dele, ele, dele, ele, sujeito. Ou de outro
qualquer evento, o qual, imediatamente, e muito aliás, seguiu-se.
De um — dois.
Despontando, com o Chefe-de-Polícia, o Chefe-de-Gabinete do Secretário.
Passou-se-lhe um binóculo e ele enfiava olho, palmeira-real avante-acima, detendo-se,
no titular. Para com respeito humano renegá-lo: — "Não o estou bem reconhecendo…" Entre, porém, o que com
mais decoro lhe conviesse, optava pela solicitude, pálido. Tomava o ar um ar de
antecâmara, tudo ali aumentava de grave. A família já fora avisada? Não, e
melhor, nada: familia vexa e vencilha. Querendo-se conquanto as verticais
providências, o que ficava por nossa má-arte. Tinha-se de parlamentar com o
demente, em não havendo outro meio nem termo. Falar para fazer momento; era o
caso. E, em menos desniveladas relações, como entrosar-se, físico, o diálogo?
Se era preciso um
palanque? — disse-se. Com que, então sem mais, já aparecia — o cônico cartucho
ou cumbuca — um alto-falante dos bombeiros. O dr. Diretor ia razoar a causa:
penetrar em o labirinto de um espírito, e — a marretadas do intelecto —
baqueá-lo, com doutoridade. Toques, crebros, curtos, de sirene, o incerto
silêncio geraram. O dr. Diretor, mestre do urso e da dança empunhava o preto cornetão,
embocava-o. Visava-o para o alto, circense, e nele trombeteiro soprava. — "Excelência!…" — começou,
sutil, persuasivo; mal. — "Excelência…"
— e tenha-se, mesmo, que com tresincondigna mesura. Sua calva foi que se luziu,
de metalóide ou metal; o dr. Diretor gordo e baixo. Infundado, o povo o apupou:
— "Vergonha, velho!" — e —
"larga, larga!…" Deste modo, só estorva, a leiga opinião, quaisquer clérigas
ardilidades.
Todo abdicativo,
o dr. Diretor, perdido o comando do tom, cuspiu e se enxaguava de suor, soltado
da boca o instrumento. Mas não passou o megafone ao professor Dartanhã, o que
claro. Nem a Sandoval, prestante, nem ao Adalgiso, a cujos lábios. Nem ao dr.
Bilôlo, que o querendo, nem ao dr. Eneias, sem voz usual. A quem, então pois? A
mim, mi, me, se vos parece; mas só enfim. Temi quando obedeci, e muito siso
havia mister. Já o dr. Diretor me ditava:
— "Amigo, vamos fazer-lhe um favor, queremos
cordialmente ajudá-lo…" — produzi, pelo conduto; e houve eco. — "Favor? De baixo para cima?…" —
veio a resposta, assaz sonora. Estava ele em fase de aguda agulha. Havia que o questionar.
E, a novo mando do dr. Diretor, chamei-o, minha boca, com intimativa: — "Psiu! Ei! Escute! Olhe!…" —
altiloquei. — "Vou falir
de bens?" — ele
altitonava. Deixava que eu prosseguisse; a sua devendo de ser uma compreensão
entediada. Se lhe de deveres e afetos falei! — "O amor é uma estupefação…" — respondeu- me. (Aplausos.) Para tanto tinha poder: de fazer,
vezes, um oah-oa-oah! — mão na boca —
cavernoso. Intimou ainda: — "Tenha-se
paciência!…" E: — "Hem?
Quem? Hem?" — fez, pessoalmente, o dr. Diretor, que o aparelho,
sôfrego, me arrebatara. — "Você, eu,
e os neutros…" — retrucou o homem; naquele elevado incongruir, sua imaginação
não se entorpecia. De nada, esse ineficaz paralaparacaparlar, razões de quiquiriqui,
a boa nossa verbosia; a não ser a atiçar-lhe mais a mioleira, para uma verve
endiabrada. Desistiu-se, vem que bem ou mal, do que era querer-se amimar a
murros um porco-espinho. Do qual, de tão de cima, ainda se ouviu, a final,
pérfida pergunta: — "Foram às
últimas hipóteses?"
Não. Restava o
que se inesperava, dando-se como sucesso de ipso-facto. Chegava… O quê? O que crer?
O próprio! O vero e são, existente, secretário das Finanças Públicas — ipso. Posto
que bem de terra surgia, e desembarafustadamente. Opresso. Opaco. Abraçava-nos,
a cada um de nós se dava, e aliás o adulávamos, reconhecentemente, como ao Pródigo
o pai ou o cão a Ulisses. Quis falar, voz inarmônica; apontou causas; temia um
sósia? Subiam-no ao carro dos bombeiros, e, aprumado, primeiro perfez um giro
sobre si, em tablado, completo, adequando-se à expositura. O público lhe devia.
— "Concidadãos!" — ponta
dos pés. — "Eu estou aqui, vós me vêdes.
Eu não sou aquele! Suspeito exploração, calúnia, embuste, de inimigos e adversários…"
De rouco, à força, calou-se, não se sabe se mais com bens ou que males. O
outro, já agora ex-pseudo, destituído, escutou-o com ociosidade. De seu
conquistado poleiro, não parava de dizer que "sim", acenado.
Era meio-dia em
mármore. Em que curiosamente não se tinha fome nem sede, de demais coisas qual
que me lembrava. Súbita voz: — "Vi a
Quimera!" — bradou o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e
que era? Por ora, agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante, quídam. Desconsiderando
a moral elementar, como a conceito relativo: o que provou, por sinais muito claros.
Desadorava. Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo
épico epidérmico? Mostrou — o que havia entre a pele e a camisa.
Pois, de repente,
sem espera, enquanto o outro perorava, ele se despia. Deu-se à luz, o fato
sendo, pingo por pingo. Sobre nós, sucessivos, esvoaçantes — paletó, cueca,
calças — tudo a bandeiras despregadas. Retombando-lhe a camisa, por fim, panda,
aérea, aeriforme, alva. E feito o forró! — foi — balbúrdias. Na multidão havia
mulheres, velhas, moças, gritos, mouxe-trouxe, e trouxe-mouxe, desmaios. Era,
no levantar os olhos, e o desrespeitável público assistia — a ele in puris naturalibus. De quase alvura
enxuta de aipim, na verde coma e fronde da palmeira, um lídimo desenroupado.
Sabia que estava a transparecer, apalpava seus membros corporais. — "O síndrome…" — o Adalgiso observou;
de novo nos confusionávamos. — "Síndrome
exofrênico de Bleuler…" — pausado, exarou o Adalgiso. Simplificava-se
o homem em escândalo e emblema, e franciscano magnifício, à força de sumo
contraste. Mas se repousava, já de humor benigno, em condições de
primitividade.
Com o que — e
tanta folia — em meio ao acrisolado calor, suavam e zangavam-se as autoridades.
Não se podendo com o desordeiro, tão subversor e anônimo? Que havia que iterar,
decidiram, confabulados: arcar com os cornos do caso. Tudo se pôs em movimento,
troada a ordem outra vez, breve e bélica, à fanfarra — para o cometimento dos
bombeiros. Nosso rancho e adro, agora de uma largura, rodeado de cordas e
polícias; já ali se mexendo os jornalistas, repórteres e fotógrafos, um punhado;
e filmavam.
O homem, porém,
atento, além de persistir em seus altos intentos, guisava-se também em trabalho
muito ativo. Contara, decerto, com isso, de maquinar-se-lhe outra esparrela. Tomou
cautela. Contra-atacava. Atirou-se acima, mal e mais arriba, desde que tendo
início o salvatério: contra a vontade, não o salvavam! Até; se até. A erguer-se
das palmas movediças, até o sumo vértice; ia já atingir o espique, ver e ver
que com grande risco de precipitar-se. O exato era ter de falhar — com uma
evidência de cachoeira. — "É hora!"
— foi nossa interjeição golpeada; que, agora, o que se sentia é que era o
contrário do sono. Irrespirava-se. Naquela porção de silêncios, avançavam os bombeiros,
bravos? Solerte, o homem, ao último ponto, sacudiu-se, se balançava, eis: misantropóide
gracioso, em artificioso equilíbrio, mas em seu eixo extraordinário. Disparatou
mais: — "Minha natureza não pode dar
saltos?…" — e, à pompa, ele primava.
Tanto é certo que
também divertia-nos. Como se ainda carecendo de patentear otimismo,
mostrava-nos insuspeitado estilo. Dandinava. Recomplicou-se, piorou, a pausa. Sua
queda e morte, incertas, sobre nós pairando, altanadas. Mas, nem caindo e
morrendo, dele ninguém nada entenderia. Estacavam, os bombeiros. Os bombeiros
recuavam. E a alta escada desandou, desarquitetou-se, encaixava-se. Derrotadas
as autoridades, de novo, diligentes, a repartir-se entre cuidados. Descobri, o
que nos faltava. Ali, uma forte banda-de-música, briosa, à dobrada. Do alto daquela
palmeira, um ser, só, nos contemplava.
Dizendo sorrindo
o capelão: — "Endemoninhado…"
Endemoninhados,
sim, os estudantes, legião, que do sul da praça arrancavam? — de onde se haviam
concentrado. Dado que roda-viveu um rebuliço, de estrépito, de assaltada. Em
torrente, agora, empurravam passagem. Ideavam ser o homem um dos seus, errado
ou certo, pelo que juravam resgatá-lo. Era um custo, a duro, contê-los, à estudantada.
Traziam invisa bandeira, além de fervor hereditário. Embestavam. Entrariam em
ato os cavalarianos, esquadrões rompentes, para a luta com o nobre e jovem
povo. Carregavam? Pois, depois. Maior a atrapalhação. Tudo tentava evoluir, em
tempo mais vertiginoso e revelado. Virou a ser que se pediam reforços, com vistas
a pôr-se a praça esvaziada; o que vinha a ponto. Porém, também entoavam-se
inacionais hinos, contagiando a multaturba. E paz?
De ás e roque e
rei, atendeu a isso, trepado no carro dos bombeiros, o Secretário da Segurança
e Justiça. Canoro, grosso, não gracejou: — "Rapazes! Sei que gostam de me
ouvir. Prometo, tudo…" — e verdade. Do que, aplaudiram-no, em sarabando,
de seus antecedentes se fiavam. Deu-se logo uma remissão, e alguma calma. Na
confusão, pelo sim pelo não, escapou-se, aí, o das-Finanças-Públicas Secretário.
Em fato, meio quebrado de emoções, ia-se para a vida privada.
Outra coisa
nenhuma aconteceu. O homem, entre o que, entreaparecendo, se ajeitara, em berço,
em seus palmares. Dormindo ou afrouxando de se segurar, se ele desse de torpefazer-se,
e enfim, à espatifação, malhar abaixo? De como podendo manter-se rijo incontável
tempo assim, aos circunstantes o professor Dartanhã explicava. Abusava de nossa
paciência — um catatônico-hebefrênico — em estereotipia de atitude. — "A frechadas logo o depunham, entre os
parecis e nhambiquaras…" — inteirou o dr. Bilôlo; contente de que a civilização
prospere a solidariedade humana. Porque, sinceros, sensatos, por essa altura, também
o dr. Diretor e o professor Dartanhã congraçavam-se.
Sugeriu-se nova
expediência, da velha necessidade. Se, por treslouco, não condescendesse, a apelo
de algum argumento próximo e discreto? Ele não ia ressabiar; conforme
concordou, consultado. E a ação armou-se e alou-se: a escada exploradora — que
nem que canguru, um, ou louva-a-deus enorme vermelho — se desdobrou, em engenhingonça,
até a mais de meio caminho no vácuo. Subia-a o dr. Diretor, impertérrito ousadamente,
ele que naturalizava-se heróico. Após, subia eu descendo, feito Dante atrás de
Virgílio. Ajudavam-nos os bombeiros. Ao outro, lá, no galarim, dirigíamo-nos,
sem a própria orientação no espaço. A de nós ainda muitos metros, atendia-nos,
e ao nosso latim perdido. Por que, brusco, então, bradou por: — "Socorro!…" —?
Tão então outro
tresbulício — e o mundo inferior estalava. Em fúria, arruaça e frenesis, ali a população,
que a insanar-se e insanir-se, comandando-a seus mil motivos, numa alucinação
de manicomiáveis. Depreque-se! — não fossem derrubar caminhão e escada. E tudo
por causa do sobredito-cujo: como se tivesse ele instilado veneno nos reservatórios
da cidade.
Reaparecendo o
humano e estranho. O homem. Vejo que ele se vê, tive de notá-lo. E algo de terrível
de repente se passava. Ele queria falar, mas a voz esmorecida; e embrulhou-se-lhe
a fala. Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido,
relucidado; com a cabeça comportada. Acordava! Seu acesso, pois, tivera termo,
e, da ideia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído, desinfluído — se
não se quando — soprado. Em doente consciência, apenas, detumescera-se, recuando
ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo, ao sem-fim do comedido.
Aquele pobre homem descoroçoava. E tinha medo e tinha horror — de tão novamente
humano. Teria o susto reminiscente — do que, recém, até ali, pudera fazer, com
perigo e preço, em descompasso, sua inteligência em calmaria. Sendo agora para
desempenhar-se, de um momento para nenhum outro. Tremi, eu, comiserável. Vertia-se,
caía? Tiritávamos. E era o impasse da mágica. É que ele estava em si; e
pensava. Penava — de vexame e acrofobia. Lá, ínfima, louca, em mar, a multidão:
infernal, ululava.
Daí, como
sair-se, do lance, desmanchado o firme burgo? Entendi-o. Não tinha rosto com que
aparecer, nem roupas — bufão, truão, tranca — para enfrentar as razões finais.
Ele hesitava, electrochocado. Preferiria, então, não salvar-se? Ao drama no catafalco,
emborcava-se a taça da altura. Um homem é, antes de tudo, irreversível. Todo
pontilhado na esfera de dúvida, propunha-se em outra e imensurável distância,
de milhões e trilhões de palmeiras. Desprojetava-se, coitado, e tentava
agarrar-se, inapto, à Razão Absoluta? Adivinhava isso o desvairar da multidão
espaventosa — enlouquecida. Contra ele, que, de algum modo, de alguma maravilhosa
continuação, de repente nos frustrava. Portanto, em baixo, alto bramiam. Feros,
ferozes. Ele estava são. Vesânicos, queriam linchá-lo.
Aquele homem
apiedava diferentemente — de fora da província humana. A precisão de viver
vencia-o. Agora, de gambá num atordoamento, requeria nossa ajuda. Em fácil pressa
atuavam os bombeiros, atirando-se a reaparecê-lo e retrazê-lo — prestidigitavam-no.
Rebaixavam-no, com tábuas, cordas e peças, e, com seus outros meios apocatastáticos.
Mas estava salvo. Já, pois. Isto e assim. Iria o povo destruí-lo?
Ainda não concluindo. Antes, ainda na
escada, no descendimento, ele mirou, melhor, a multidão, deogenésica, diogenista.
Vindo o quê, de qual cabeça, o caso que já não se esperava. Deu-nos outra cor.
Pois, tornavam a endoidá-lo? Apenas proclamou: — "Viva a luta! Viva a Liberdade!" — nu, adão, nado,
psiquiartista. Frenéticos, o ovacionaram, às dezenas de milhares se abalavam.
Acenou, e chegou embaixo, incólume. Apanhou então a alma de entre os pés,
botou-se outro. Aprumou o corpo, desnudo, definitivo.
Fez-se o
monumental desfecho. Pegaram-no, a ombros, em esplêndido, levaram-no carregado.
Sorria, e, decerto, alguma coisa ou nenhuma proferia. Ninguém poderia deter ninguém,
naquela desordem do povo pelo povo. Tudo se desmanchou em andamento, espraiando-se
para trivialidades. Vivera-se o dia. Só restava imudada, irreal, a palmeira.
Concluindo. Dando-se que, em pós,
desafogueados, trocavam-se pelos paletós os aventais. Modulavam drásticas
futuras providências, com o professor Dartanhã, ex-professo, o dr. Diretor e o
dr. Eneias — alienistas. — "Vejo que
ainda não vi bem o que vi…" referia Sandoval, cheio de cepticismo
histórico. — "A vida é constante,
progressivo desconhecimento…" — definiu o dr. Bilôlo, sério, entendo
que, pela primeira vez. Pondo o chapéu, elegantemente, já que de nada se sentia
seguro. A vida era à hora.
Apenas nada disse
o Adalgiso, que, sem aparente algum motivo, agora e sempre súbito assustava-nos.
Ajuizado, correto, circunspecto demais: e terrível, ele, não em si,
insatisfatório. Visto que, no sonho geral, permanecera insolúvel. Dava-me um
frio animal, retrospectado. Disse nada. Ou talvez disse, na pauta, e eis tudo.
E foi para a cidade, comer camarões.
Este texto foi extraído da internet,
revisado minuciosamente conforme a 15ª edição do livro Primeiras estórias (Nova Fronteira, 2003) e desavergonhadamente de acordo com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
tendo sido sumariamente suprimidos da versão original principalmente os tremas e a acentuação gráfica das ideias.
Leia no volume máximo.