Os alunos Elias Araújo, da Produção Literária 2012, e Lígia Moscardini foram classificados cada um com um conto no VII Concurso Literário de Presidente Prudente (SP), realizado pela Secretaria Municipal de Cultura daquela cidade. A premiação será em publicação impressa, isto é, eles receberão quinze exemplares da antologia que será editada.
A Produção Literária externa aqui seu orgulho de contar com mais premiações entre seus alunos e confere, ao mesmo tempo, seus parabéns aos trabalhos selecionados.
Seguem abaixo os contos:
Um dia tivemos uma surpresa tão inesperada quanto
indesejada. Vovó sumiu no final de tarde, levando apenas uma máquina
fotográfica velha, do século passado, de quando ainda era uma mocinha. Só soubemos
o que levou porque tinha passado o dia todo remexendo em coisas velhas,
guardadas no quartinho dos fundos. Vasculhou e deixou tudo com cara de depósito
de lixo só para encontrar a máquina. O engraçado é que ela mantinha numa gaveta
do guarda-roupa uns rolos de filmes que talvez nem funcionassem mais, de tão
antigos.
Começamos a ficar preocupados duas horas depois do
anoitecer, porque ligamos para um monte de gente e não a encontramos. Os
vizinhos não a viram sair, e teriam notado, já que raramente ela o fazia.
Quando voltou, estava cantarolando e dando pulinhos. Parecia
uma adolescente que escapara da vigia dos pais para se encontrar com o
namorado. Por um momento nós nos olhamos, dando risinhos nervosos, achando que
era aquilo mesmo, que vovó talvez tivesse encontrado um namorado. Aos oitenta e
cinco anos!
Tomei a frente dos meus pais, tios e primos e fui me
encontrar com ela do outro lado da rua. Dei-lhe o braço. Ela sorriu e
agradeceu.
— Bisa, onde a senhora se enfiou? — perguntei, sorrindo,
para não constrangê-la.
Atravessamos a rua com ela ainda sorrindo, sem se preocupar
com os olhares da família esperando a resposta.
— Uai! — disse ela, em sua habitual e última expressão de
mineirice que lhe restou. — Não fui muito longe. Só estava ali na Ponte do Lago
Zero caçando um poente.
Pelos olhares que vi ninguém entendeu nada. Ela foi do
sorriso de escárnio ao riso escancarado, como se fôssemos muito tolos por
acreditar nela. Entretanto, insistiu:
— Meus amores, eu só estava tirando uma foto do pôr-do-sol,
como o vovô e eu fazíamos antigamente. Vocês sabiam que a gente se conheceu na
Ponte do Lago Zero?
Sabíamos, claro. Ouvimos a história alguns milhares de vezes
desde que vovô foi conhecer o outro lado, como ela sempre dizia. Entramos com
ela em casa e nos preparamos para escutar as mesmas palavras mais uma vez: não
mudava uma vírgula, como se tivesse decorado um texto para o teatro. E ainda
falava com tanta emoção do primeiro beijo que vovô lhe dera que sorríamos vendo
os olhos dela brilharem.
Deixamo-la em sua casinha. Felizmente morávamos perto. E em
qualquer problema poderíamos socorrê-la rapidamente. Mesmo assim, aceitei seu
convite e passei a noite lá.
No dia seguinte, agiu como se nada tivesse acontecido.
Passou o dia limpando a casa em seu passinho enrugado. Fui para a escola após o
almoço. E quando voltei, vovó tinha sumido novamente. Esperamos pacientemente
até ela aparecer, com a máquina pendurada no braço como uma relíquia santa do
tempo. Fui ajudá-la novamente a atravessar a rua. E nem sei por que, afinal ela
andara uns bons quilômetros até a ponte. Sozinha.
— Bisa, eu vou dar pra senhora a minha máquina digital! —
exclamei ao examinar a máquina dela depois que ela mesma me explicou como
funcionava, como colocava o filme e batia a foto olhando por aquele minúsculo
retângulo de vidro e depois girava o botão pra avançar o filme. Fiquei de boca
aberta. Nem quis experimentar. Felizmente minha geração nunca tinha visto
aquilo. — Bisa, a minha máquina tem 12 megapixel, cartão de memória de 4 gigas
e visor led de 5 polegadas: é muito melhor pra senhora ver a foto. E se não
ficar boa, pode apagar e tirar outra mais bonita.
Ela ficou pensando, vi seus olhos vindo na minha direção bem
devagar. E deu aquele sorriso doce que eu adorava.
— Filhinho, tirar a foto e apagar? E tirar de novo? Mas aí o
momento único do poente vai ter passado.
Não entendi o que quis dizer, claro, mas insisti em lhe dar
minha máquina digital. Aceitou, mas nos dias que se seguiram, a máquina ficou
esquecida na cômoda do quarto enquanto ela ia caçar seus poentes com a velha
Kodak e seu rolo de 24 poses. Um dia cheguei da escola quando ela estava
saindo.
— Vai tirar foto de novo, Bisa? — perguntei, sorrindo. — O
pôr-do-sol é o mesmo todos os dias!
— De novo, não, filhinho. — retrucou ela. — Faz tanto tempo
que eu não vou caçar um poente na Ponte do Lago Zero! Senti saudades hoje. Você
sabia que eu conheci seu bisavô na Ponte, bem na hora do pôr-do-sol?
— Não sabia não, Bisa. — disse eu, emocionado, ao perceber
que algo não estava encaixado naquela antiga e forte engrenagem. — Me conte a
história.
— Ai, filhinho, quando eu voltar, conto tudinho pra você. —
ela falou e me beijou no rosto. Depois ficou me olhando. — Sabe que você é
muito parecido com seu bisavô?
Vovó nunca mais voltou para casa. Mergulhadores procuraram
por vários dias no Lago Zero e só nos trouxeram a velha máquina. Ao abri-la,
descobrimos que ela nem funcionava mais e que vovó sequer tinha colocado
pilhas. O filme de vovó havia acabado e não havia meios de rebobiná-lo.
A educação pelos dedos
Lígia Egídia
Moscardini
— Mas por que então ninguém me avisou?
Voltei
perplexa na escolha das aulas. O primeiro ano do Ensino Médio terá um aluno
cego. Há anos que eu dava aula lá, e nunca havia passado por isso... Me
disseram que foi por eu ser uma das professoras mais experientes. Mas me senti
traída. Tinha era um medo dessa história de inclusão. Como é que eu vou fazer?
Ele não vai copiar nada? Vai ficar jogado na sala? Tenho que tomar cuidado? Não
faço a menor ideia.
No primeiro
dia do bimestre, lá estava ele. Qualquer professor perceberia nele a vontade de
estudar. Os óculos escuros e a bengala branca não eram suficientes para ocultar
o sorriso que parecia entusiasmado em começar o Ensino Médio, na escola nova,
com tudo novo. Sentou-se mais depressa que minha disponibilidade em colocá-lo
na cadeira e, enquanto os outros colegas chegavam, me apresentei e falei um
pouco sobre a disciplina. Logo me falou um pouco dele, que aprendera braille,
que agora tinha a máquina de escrever, que não ia faltar mais nenhum dia, que a
outra escola era um pouco negligente.
— Não conseguia escrever direito,
os professores passavam a matéria muito rápido. Depois, me falaram esse ano que
não tinha mais vaga. Mas acho é que não
foram com a minha cara. Daí, eu vim pra cá.
— Veio pra cá porque gostou mais?
— É, parece melhor. E me aceitaram matricular também. E
outra, agora com a máquina de escrever em braile acho que não vou me atrasar
mais com nada.
Senti um pouco de compreensão e de revolta.
Porque eu também não sabia lidar com esse tipo de aluno, mas não era o caso de
tentar alguma coisa, o mínimo que fosse? Disse para se acalmar, que nem eu nem
outros professores seriam rápidos. Resolvi não encher tanto a lousa como de
costume e algum colega lia tudo em voz alta depois para que ele anotasse.
Parecia que acompanhava melhor a aula assim. Mas ainda me dava certa pena vê-lo
com aquele sacrifício para anotar as coisas.
De uma classe a outra, ele me vinha muito
em mente. Algumas vezes, o via escrever até na hora do intervalo. Numa dessas,
parei para conversar:
— Lucas, mas você vai ficar aí, não vai aproveitar o
intervalo, menino?
— É que eu tenho que terminar as
equações de matemática.
—
Equações? Mas com braille? Tem como?
— Ué, tem. Antes de eu aprender braile é que não tinha. Eu
sempre ficava
de exame em matemática. Ou os professores me passavam
direto, porque eu sou cego. E a máquina agora me deixa fazer tudo mais rápido.
— Você está certo em se
empenhar... Bem, quer que eu te busque um lanche?
— Que isso, Dona Leda... Já fui e já voltei, porque
precisava adiantar as coisas, fazer uns trabalhos aqui. E as provas estão aí, inclusive
a da senhora, né? — Concluiu com o sorriso que ele próprio nunca poderia ver.
Era
muita a vontade dele, apesar do problema que tem. Disse que precisava ir para a
sala dos professores. “As provas estão aí, inclusive a da senhora né?” essa
frase sempre me ressoava no inesperado, e me fazia voltar a ele. Tanto que, já ministradas as aulas da turma
dele, eu não me desligava. Precisava pensar: será que eu facilito a prova? Dou
a mesma prova para ele? Pergunto oralmente?
Mas ele já era tão revoltado com certas atitudes, me dizia que não era
surdo, que não era criança, que não era doente... É, para mim, seria mais uma
prova de bimestre, apenas para compor uma das notas. Mas para ele seria bem
mais do que isso. Era um ato de adaptação. De mérito. De semelhança com os
outros. De superação. Quer saber? Em vez
de xerocar as perguntas ou colocá-las na lousa, vou ditá-las oralmente, para
todo mundo. E o Lucas vai responder em braille. E outra coisa: quem vai
corrigir a prova dele serei eu.
Oito dias depois, vou com a folha de anotações das
perguntas.
—
Pessoal, sentem em carteiras distantes e silêncio, que eu vou ditar as
perguntas. Além dela, vou dar um trabalho escrito e duas redações. Qualquer
dúvida sobre as notas, podem me perguntar depois. Boa prova!
Mas não bastava garantir que
Lucas escrevesse do mesmo jeito que os colegas. Pouco depois, um outro aluno
estava decidido a criar caso, e levantou aos gritos:
— Professora, não dá!
Não consigo fazer a prova com o barulho desse negócio! Difícil pra quem
estudou, né? Deixa ele fazer prova oral em outra sala!
— Renato, não vou fazer isso.
— Se ninguém fizer nada eu faço. Lá na coordenadora da escola.
— Renato! A prova é
para a turma. E é exclusivamente escrita. Só acato sua reclamação se você
sugerir outro jeito de o Lucas escrever na prova dele. Fui clara?
Meio com raiva, ele se conformou.
A classe esperava uma reação minha nesse sentido. Era também preciso mostrar
que nos cabe olhar para o outro, não apenas em nossa individualidade. E que
isso começa na escola. Além de que o Lucas precisava de mais segurança em minha
aula e nessa tal prova que tanto o entusiasmava. Parecia, para ele, que era a
primeira vez que faria uma prova “de verdade”. Foram entregues. Mas não era só.
A do Lucas precisava ser corrigida, com o mesmo afinco e precisão do que as
outras. Isso, confesso, ainda me deixava um pouco apreensiva.
— Mas como é que você vai corrigir isso, Leda?
— Eu não sei... Mas que ele fez em braille,
fez. Não poderia deixar que fosse diferente.
Dias
depois, enquanto seguia com o currículo, ia pensando nas possibilidades. Não
tinha tempo nem dinheiro para fazer algum curso. Além disso, queria muito
entender o que é que aquele aluno escrevia. E fui tentar, inspirada no próprio
Lucas. Todos os dias, às cinco da manhã, busquei alguma coisa do sistema braille.
Isso me tomou algum tempo de sono, mas não era para sempre. Não demorou tanto e
já encontrava algumas pistas: há vários livros que ensinam braille. E são bem
explicativos. E tem cursos interativos na internet. E não, não era o bicho-de-sete-cabeças
que eu imaginava, embora exigisse treino. Na prática, uma substituição de
caracteres, com sequencias lógicas, o suficiente para ler. Enfim, demoraria bem menos tempo do que eu
esperava! Um misto de alívio e entusiasmo tomou conta de mim. Enchia o papel
com vários pontos em braille. Cerrei os olhos. E cada letra ia se formando na
incrível distância entre um pontinho e outro e, entre os vários grupos de
pequenos pontos, se formava letras, sílabas, palavras, frases. Um universo além
de meus olhos. Em que nenhum detalhe poderia passar indiferente. Todos os meus
sentidos dialogavam com aqueles pontos, a cada vez que trazia meu toque
comungado em palavras.
Enfim,
em questão de quinze dias, estava com todas as provas corrigidas. Lucas ficou
com oito, e alguns colegas conseguiram uma nota maior que essa. Mas não era
isso que eu via. Nenhuma era melhor ou pior. O fato é que eu vim com todas.
Todas. De todos os alunos. Entendi que incluí-lo não era defender, dar algo
mais fácil, negligenciar sua capacidade. Inclui-lo era deixa-lo igual. Com os
recursos dele. Que o aluno, especial ou não, precisava de um meio de acordo com
ele próprio, para que tenha seu espaço no todo. Além disso, entendi que ler
poderia ser diferente do que ver as palavras. De que não era preciso
necessariamente olhos para ver, enxergar, admitir, perceber, observar, sentir. Tudo
isso significa ler, de alguma forma. Importante, afinal, em qualquer aula, em
qualquer turma, para qualquer tipo de aluno. Admito, nunca imaginava o que a
linguagem dos cegos pudesse me fazer enxergar.
Leia também de Elias Araújo:
-
A longa espera, miniconto produzido a partir de exercício em aula da
Produção Literária 2012.
Leia também de Lígia Moscardini:
-
Outdoor, poema visual selecionado no Mapa Cultural Paulista 2013/2014.
Confira o resultado do
VII Concurso Literário de Presidente Prudente clicando
aqui.