A caixa azul
24 de setembro de 2012, 01:45 p.m.
- O almoço estava ótimo, querida.
- Obrigada. Mas aonde você vai com tanta pressa?
- Recebi uma ligação do consultório. Parece que há um paciente à minha espera. A Mariana ainda não telefonou?
- Não. Hoje ainda não; ela deve ter ficado até mais tarde na faculdade.
- Tudo bem. Assim que eu estiver mais sossegado te ligo do trabalho. Beijo. E quando a Mariana ligar diga que mandei um beijo. Não se esqueça de perguntar se ela vem passar o fim de semana conosco.
- Claro que ela vem. É seu aniversário. Não seja bobo. Beijos. Te amo.
- Também te amo!
Mariana sempre passava as datas especiais em casa. Era dedicada à família e não herdara a arrogância do pai. Dr. Paulo nunca foi muito presente. Esquecera-se do último aniversário da filha e na tentativa de reconciliação mandara para a menina um par de brincos de pérola.
* * *
No caminho para o trabalho, dr. Paulo olhou para seu braço com uma marca de mordida e sentiu repulsa. Também ia olhando de relance os anúncios e outdoors que poluíam sua visão. Queria, na verdade, avistar o seu próprio: um bem grande que trazia uma foto sua vestido com seu terno italiano com a mão nas têmporas e os cotovelos apoiados em uma grande mesa de cerejeira tomada por livros. Havia livros por todas as partes. Na sua retaguarda e até uns ao seu pé, que ele quis que o editor de imagem cortasse mas este se recusara dizendo que a imagem perderia sua forma e naturalidade. Dr. Paulo não gostava dos artistas.
Assim que passou pelo outdoor que dizia “Dr. Paulo Gusmão, cinco vezes reconhecido pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Clínica Gusmão: há mais de uma década zelando pela saúde mental. Mente sã, corpo são”, o doutor, com seu ego inebriado, estacionou o carro na sua costumeira vaga e dirigiu-se até o elevador. Apertou o 15º andar e cruzou as mãos na altura dos testículos. Adentrou o recinto avistando a secretária, que na ante-sala o esperava com uma ficha de controle nas mãos:
- Ele está lá dentro, doutor.
Passou pela moça, pegando automaticamente a ficha de suas mãos e ignorando o fato de haver outra pessoa respirando além dele no mesmo lugar.
Abriu a porta de seu consultório e avistou Jorge deitado no divã.
Jorge estava usando uma camisa xadrez, calça marrom e um sapato preto bem surrado. Tinha um anel, que o doutor julgava ser de camelô, no indicador da mão direita, e usava o cabelo sempre virado para o lado esquerdo. Era fã dos Beatles, por isso deixava um bigodinho à lá George Harrison e costeletas no estilo Ringo Starr. A camisa enfiada por dentro da calça realçava a barriga um pouco volumosa; as duas mãos cruzadas numa posição mortuária que só era amenizada pelo fato de ele fazer um pequeno chiado ao respirar. Talvez ele tivesse asma ou coisa que o valesse. O doutor não gostava daquele chiado.
- Pois bem, Jorge, o que faz aqui? Achei que nosso próximo encontro fosse na semana que vem.
Ao levantar-se do divã, Jorge desatinou num choro suplicante:
- Me perdoe, doutor. Por favor, me perdoe.
- Está tudo bem, Jorge. Ontem você infringiu as regras. Tivemos de sedá-lo.
- Me perdoe pela mordida, doutor. Juro que estou arrependido...
- Já está tudo bem.
O consultório do dr. Paulo era frio por causa do ar condicionado. Tinha um enorme tapete que pegava quase todo o centro da sala. E, ao fundo, uma grande mesa de mármore com alguns livros e uma cadeira giratória de tamanho absurdo. Logo atrás, um quadro da família.
Este quadro fez Jorge tomar uma decisão. Queria desculpar-se com o doutor pela última consulta. Queria dar a ele uma coisa de que gostasse muito.
- Eu trouxe um presente para o sr. doutor.
Estendendo as mãos que buscaram uma caixa atrás das sombras do divã, Jorge entregou- a ao doutor.
- Espero que o senhor goste! – era uma caixa azul.
- Certo. Agora você pode ir Jorge. Nos vemos na semana que vem.
- Doutor? O Sr. sabe que eu não gosto que gritem comigo, né doutor? O Sr. sabe.
Jorge não gostava que gritassem com ele.
- Sim, eu sei. Agora, por favor, Jorge. Não me faça chamar os seguranças.
- Tudo bem, doutor. Tchau. Até semana que vem.
- Até.
A porta se fechou e o doutor respirou fundo.
24 de setembro de 2012, 05:45 p.m.
- Consultório do dr. Paulo Gusmão, boa tarde!
- Oi, Vanessa. É a Linda. O Paulo ainda está por aí?
- Olá, senhora Gusmão. Está sim. Um minutinho só, que eu já transfiro a senhora.
- Obrigada!
- Oi, Linda; aconteceu alguma coisa?
- Estou preocupada, Paulo. O celular da Mariana só cai na caixa postal. Falei com as amigas dela da república e elas disseram que a Mariana não dormiu em casa essa noite. Ela nunca fez isso.
- Fique calma, Linda. Na certa ela está com algum namorado. Vou sair do consultório em cinco minutos. Vou até a cidade universitária procurar por ela.
- Obrigada, querido. Não sei o que seria de mim se não fosse sua calma e serenidade.
- Não se preocupe. Até mais tarde.
* * *
Saindo do consultório o doutor passou pela mesa da secretária:
- Tome, Vanessa, livre-se disso para mim por favor.
- O que é isso, doutor? Que caixa mais bonita! Eu adoro esse tom de azul...
- Não faço a mínima ideia. O maluco do Jorge quem me deu. Eu não quero nem saber o que é.
- Pode deixar que eu dou jeito, doutor.
- Obrigado. Até amanhã.
- Até amanhã, doutor.
Dr. Paulo caminhou até a porta e chamou o elevador. Enquanto isso, escutou seu celular vibrar dentro de sua valise. Ele abriu a pasta calmamente e pegou o telefone, ficando aliviado ao ver o nome no visor do aparelho: Mariana.
- Olá, querida. Que saudades! Por onde foi que você andou hein?
- O senhor sabe que eu não gosto que gritem...
Neste instante um grito apavorado veio do consultório. E mais outro. E outro grito.
Paulo saiu correndo e encontrou a secretária, trêmula, com as mãos no rosto. No chão, o doutor viu a caixa azul com um rastro de sangue que levava até uma cabeça decapitada. Paulo derrubou a pasta e o celular no chão. Arregalou os olhos e com as mãos na cabeça soltou um urro desesperado.
Entre fios de cabelo ensanguentados, grudado em um pedaço de cartilagem que um dia fôra uma orelha, notava-se um delicado brinco de pérola.
Do celular caído no chão podia-se ouvir entre os gritos de Paulo e Vanessa uma voz suplicante:
- Parem, por favor, parem de gritar!
Jorge não gostava de gritos.
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